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[205] Desafios e limitações do ChatGPT

  Ontem tive uma excelente discussão com o Everton Garcia da Costa (UFRGS) e André Dirceu Gerardi (FGV-SP), a convite do NUPERGS, sobre Desafios e Limitações do ChatGPT nas ciências humanas . Agradeço a ambos pela aprendizagem propiciada. Gostaria de fazer duas considerações que não enfatizei o bastante ou esqueci mesmo de fazer. Insisti várias vezes que o ChatGPT é um papagaio estocástico (a expressão não é minha, mas de Emily Bender , professora de linguística computacional) ou um gerador de bobagens. Como expliquei, isso se deve ao fato de que o ChatGPT opera com um modelo amplo de linguagem estatístico. Esse modelo é obtido pelo treinamento em um corpus amplo de textos em que a máquina procurará relações estatísticas entre palavras, expressões ou sentenças. Por exemplo, qual a chance de “inflação” vir acompanhada de “juros” numa mesma sentença? Esse é o tipo de relação que será “codificada” no modelo de linguagem. Quanto maior o corpus, maiores as chances de que esse modelo será
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[204] Ninguém conquista nada absolutamente sozinho

A excelência exige dedicação e esforço. Ninguém se torna perito em algo sem prática contínua e preferencialmente assistida por anos a fio. Certamente merece mérito quem adquire uma habilidade louvável. Sim, o tipo de habilidade importa. Não sei se estaria disposto a conferir mérito a alguém que se tornou um hábil torturador depois de anos praticando a tortura e aperfeiçoando as suas técnicas. Certamente merece mérito quem supera uma condição desabilitadora, como o recém cego que se dedica a refinar a sua audição e passa a se locomover com base nela. O mesmo claro se aplica à pessoa que supera a sua condição de pobreza ao "vencer na vida".  Ao mesmo tempo, o discurso sobre mérito tem uma coloração muito individualista, embora não precise e não deva ser lido assim. Normalmente vemos o mérito como uma conquista completamente pessoal. Contudo, isso é um grande equívoco. Todo o entorno colabora e é fundamental para qualquer aprendizagem e conquista. Que diferença faz para uma cria

[203] Filósofas e Filosófos, incomodem!

Abaixo, o discurso de formatura como paraninfo da turma de 2022. Mais uma vez, agradeço aos formando(a)s pelo convite.   Em primeiro lugar, gostaria de registrar que fiquei muito feliz e me senti muito honrado por ter sido escolhido paraninfo desta turma. Também gostaria de saudar as suas famílias, amigas e amigos, companheiros e companheiras, sem os quais esta jornada, que exige tanto tempo e dedicação, seria inviável. O afeto dos mais próximos é o que fundamentalmente nos move adiante. Não somos quase nada sozinhos. Diria que o entorno afetivo de cada um de vocês participa também da conquista intelectual e social que a formação de vocês representa e merece, portanto, o nosso reconhecimento e aplausos.   A educação transforma e eu não tenho dúvida de que hoje vocês, formandas e formandos da turma de filosofia de 2022, são pessoas bem diferentes daquelas que ingressaram no curso de filosofia alguns anos atrás. A educação filosófica transforma de um modo bem peculiar. Ao buscar, como di

[202] Filosofia Jabuticaba: algumas reflexões

O professor João de Fernandes Teixeira publicou recentemente o livro Filosofia Jabuticaba (2021), onde ele apresenta o seu diagnóstico para a ausência de pensamento filosófico genuíno no Brasil e propõe algumas saídas para essa situação aparentemente paradoxal, haja vista que a comunidade brasileira de filosofia é, em número, uma das maiores do mundo. Esse trabalho é a sua resposta ao convite para participar do Dossiê Filosofia Autoral , que será publicado na revista Trans/Form/Ação em 2022. Eu recomendo o livro vivamente, trata-se de uma contribuição bem informada e genuína para a compreensão de nós mesmos enquanto uma comunidade filosófica, como chegamos até aqui e quais possibilidades temos presentemente no nosso horizonte. Eu espero que este livro seja lido sobretudo pelas filósofas e filósofos em formação e que ele tenha o devido impacto nas novas gerações que darão continuidade e poderão dar um novo curso a nossa comunidade, preservando o que de melhor fizemos de nós mesmos até

[201] A ética da crença

Voltei ao assunto da ética da crença (veja aqui a minha contribuição anterior 194 ) para escrever um texto que possivelmente será publicado como um verbete em um compêndio de epistemologia. Nesta entrada, decidi enfatizar três maneiras pelas quais a discussão sobre normas para crer se relaciona com a ética, algo que nem sempre fica claro neste debate: (1) normas morais servem de analogia para pensar normas para a crença, ainda que os domínios normativos, o epistêmico e o moral, sejam distintos; (2) razões morais são os fundamentos últimos para adotar uma norma para crer e (3) razões morais podem incidir diretamente sobre a legitimidade de uma crença, a crença (o ato de crer) não seria assim um fenômeno puramente epistêmico. O item (3) representa sem dúvida a maneira mais forte pela qual, neste debate, epistemologia e ética se entrelaçam. Sobre ele, abordei sobretudo o trabalho da Rima Basu que, a meu ver, é uma das contribuições recentes mais interessantes e inovadoras ao debate da ét

[200] A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação, segundo Reichenbach

A distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação é normalmente apresentada como marcando a diferença entre, por um lado, os processos de pensamento, teste e experimentação que de fato ocorreram em um laboratório ou em um ambiente de pesquisa e que levaram ou contribuíram para alguma descoberta científica e, de outro, os processos de justificação e validação dessa descoberta. Haveria, portanto, uma clara diferença entre descrever como cientistas chegaram a fazer certas alegações científicas, o que seria uma tarefa para as ciências empíricas, como a sociologia, a psicologia e a antropologia da ciência, e justificar essas alegações, o que seria uma tarefa para a epistemologia, uma disciplina normativa e não-empírica. Essa distinção é corriqueira em debates acerca do escopo da filosofia da ciência e teria sido explicitada inicialmente por Reichenbach. Contudo, quando examinamos a maneira como ele circunscreveu as tarefas da epistemologia, notamos que alguns elemento

[199] Uma implicação metodológica da tese da mente estendida

A tese da mente estendida[1] tem implicações metodológicas[2]. Uma bastante óbvia é que a cognição de um organismo deve ser investigada pela observação do organismo no seu ambiente habitual ou pelo menos em uma emulação do mesmo. Se os processos cognitivos de um organismo se estendem ao seu ambiente, se a cognição é um processo que se estende no tempo e resulta da interação recorrente do organismo com o seu ambiente, formando com ele um sistema dinâmico acoplado, então a investigação adequada da cognição desse organismo não pode ser realizada isolando o organismo do seu ambiente habitual. Se, ao contrário, pensamos que os processos cognitivos de um organismo estão completamente encerrados no cérebro desse organismo, então ele pode ser estudado em situações que eliminam o seu ambiente habitual. Na verdade, nessa perspectiva tradicional, tanto melhor eliminar o ambiente habitual do organismo para se ter um controle maior sobre as variáveis que podem ter alguma influência sobre o com