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[193] Ter evidência e crer com base na evidência


Pedro tem evidência de que Marcos é culpado de um crime, pois uma testemunha ocular narrou para Pedro como Marcos cometeu um crime. No entanto, Pedro veio a crer que Marcos é culpado de um crime porque tem um ódio irracional e muito intenso de Marcos. Por causa desse ódio, Pedro acaba buscando se convencer, por algum processo de racionalização, de que Marcos é uma pessoa má e criminosa. Bastou ver Marcos apressado, com cara de culpado, para que Pedro se convencesse de que Marcos é culpado de algum crime. Pedro tem evidência de que Marcos é culpado de um crime, mas Pedro não crê que Marcos é culpado de um crime com base nessa evidência. Ele desconfia tanto das pessoas que negligencia o relato da testemunha ocular. Ele crê que Marcos é culpado de um crime com base em motivos que nada têm a ver com a verdade da sua crença e, por isso, não a justificam. Na linguagem dos epistemólogos, Pedro tem justificação proposicional para a crença de que Marcos é culpado de um crime, pois ouviu o relato da testemunha ocular, mas não tem justificação doxástica, pois sua crença não foi baseada na evidência que ele tem para essa crença[1]. Pode parecer que não há nada de ruim em crer sem se basear na evidência que se possui, já que a evidência que torna verdadeira ou provável a crença está disponível de qualquer modo. Contudo, de um ponto de vista cognitivo, é ruim que um sujeito acredite em uma proposição para a qual ele tem evidência sem se basear nessa evidência, pois esse sujeito acreditaria nessa proposição mesmo que ele não tivesse essa evidência. Pedro acreditaria que Marcos é culpado de algum crime ainda que não tivesse ouvido o relato da testemunha ocular, pois o processo de racionalização a partir do seu ódio ocorreria igualmente. Contudo, se Pedro acreditasse que Marcos é culpado de cometer um crime apenas com base na evidência disponível relevante e adequada, então na ausência dessa evidência, Pedro não acreditaria que Marcos é culpado de cometer um crime. Assim, como Pedro não acredita que Marcos é culpado de cometer um crime com base na evidência disponível, ele assume o risco de crer sem ter a evidência adequada. A evidência que ele possui é frágil, muito facilmente ele poderia não tê-la, por exemplo, se não encontra a testemunha ocular, ou se ela não conta o episódio que testemunhou etc. Ao correr esse risco, por não crer com base na evidência disponível, Pedro afasta-se da possibilidade de obter conhecimento, ele não realiza nenhuma conquista cognitiva que possa ser um caso de conhecimento. Essa diferença fundamenta por que não basta ter evidência para acreditar em algo, é essencial também que se creia nesse algo com base na evidência disponível.

Essa distinção pode iluminar situações da vida cotidiana. Suponha que um um juiz não tenha clareza acerca do que é boa razão para o que e introduza em um processo, como evidência probatória, trechos bíblicos que nada têm a ver com a sentença que ele pretende sustentar. O risco que ele assume de formar a sua convicção sem ter a evidência adequada é incompatível com a função que exerce, ainda que, no processo em questão, houvesse evidência adequada citada. Espera-se de um juiz (e não só dele, claro) que ele tenha justificação doxástica para as suas convicções, e não apenas justificação proposicional, isto é, que ele não apenas tenha evidência para a sua convicção, mas que tenha se baseado exclusivamente nessa evidência ao formar a sua convicção.

[1] Veja Bondy, Patrick, e Pritchard, Duncan, “Propositional epistemic luck, epistemic risk, and epistemic justification”, para uma discussão mais detalhada e técnica da distinção entre ter evidência e crer com base na evidência e da importância epistêmica de se crer com base na evidência.

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